16 horas milionária

Em fevereiro desse ano, eu ainda trabalhava para uma companhia aérea latino-americana. Nunca quis ser piloto ou aeromoça, tampouco me fascina a vida nos ares. Menos ainda aquele ritual de aeroporto: chegar muitas horas antes da viagem, fazer check-in, despachar as malas, tirar quase toda a roupa no raio-x e seguir apitando, jogar o perfume que trouxe na bagagem de mão fora, gastar meio salário mínimo para tomar um café meia boca, quebrar a cabeça na conversão dólar-real no Duty Free para entender que absolutamente nada ali vale a pena. Nada.

Mas acabei no jornalismo de turismo por uma temporada e não tenho do que reclamar. Enquanto os colegas estão roendo o osso em redações e ganhando mal pra chuchu, você está ganhando mal pra chuchu, mas almoçando ou jantando em restaurantes premiados, conhecendo lugares inusitados, se hospedando em hotéis que jamais conseguiria pagar com seu próprio dinheiro e desfrutando experiências tão exclusivas que ninguém nunca acreditaria se dissesse que a primeira vez que viajou de avião foi na vida adulta e que você ficou presa no cinto de segurança da aeronave porque não sabia como desabrochá-lo. Ou seja, trabalhar com jornalismo de turismo é quase como viver uma vida que não te pertence – e você fica o tempo todo com medo de descobrirem que você não tinha que estar ali.

O que me leva de volta a fevereiro desse ano. Acontece que naquele mês a companhia aérea tinha fechado uma parceria com a Disney e resolveu presentear seus melhores clientes com uma viagem a Orlando para toda a família. E vocês não têm ideia de quem é essa gente. São CEOs, CMOs, UFOs de toda a América Latina, gente que fecha pacotes anuais com a companhia por uma fortuna e pode ir para onde e quando quiser. Enquanto você está se apertando em uma quitinete em Santos com os amigos e dividindo as despesas do mercado para ninguém sair no prejuízo, eles vão passar dois dias, talvez um, em Aspen. Às vezes, almoçam em Paris e jantam no Equador, porque sim. Gente que, com toda a certeza, conseguiria pagar a sua própria viagem para a Disney, mas quanto mais você tem, menos parece que precisa gastar e eles ganharam o rolê. Porque sim também. Era o mínimo que a companhia aérea podia fazer por eles e eu fui convidada a cobrir essa viagem.

No dia em que decolaríamos, às 10h da manhã de São Paulo a Orlando em um voo direto, caiu a maior chuva que a capital paulistana viu nos últimos 67 anos. Quando a última tormenta dessas acometeu a cidade, meu pai tinha dois anos e muito provavelmente tenha apenas cagado nas calças naquele dia, como fazia todos os dias. Eu, não. Eu tive que lutar com tudo o que tinha para atravessar a cidade e conseguir chegar ao aeroporto, porque eu nunca perdi um voo em toda a minha vida. Tentei táxi, tentei uber, tentei ir a pé, tentei o metrô, tentei ônibus. Eu entrei em carros com desconhecidos. E eu cheguei.

Mas a tripulação não chegou.

Passava das duas da tarde, voo cancelado, aquele monte de milionário empilhado na Sala VIP, a gente sem saber o que fazer, os escafandristas procurando vestígios de São Paulo, até que nos foi dada a notícia, que para mim era boa:

– Conseguimos um voo para Miami às dez da noite. De lá, pegaremos um ônibus a Orlando e depois de 4h ou 5h, estaremos na Disney. Viva!

Nunca vou esquecer da cara de horror (o horror… o horror…) que metade do PIB do nosso subcontinente fez ao ouvir a notícia. Era a primeira vez na vida que eles iam andar de ônibus, com toda a certeza. Eles estavam prestes a descobrir como nós, selvagens, fazemos para nos divertir nas férias. Porque, sim, eu já comprei uma passagem para o Chile com escala de 8h em Assunção porque era metade do preço. E, se vocês entendem um pouco de mapas, vão ver que não faz o menor sentido sair de São Paulo para ir até o Paraguai e depois ao Chile. Muito menos de madrugada.

Assim fizemos. Todos eles ficariam por 5 ou 10 dias, tanto faz, mas a mim foi dada uma única opção: dois dias e não se fala mais nisso. Voltaríamos antes, eu e o videomaker, mesmo estourados da via-crucis da ida, embora, de novo, eu não esteja aqui para reclamar. Ainda era melhor do que 97% do trabalho de todos os meus amigos.

Já no aeroporto para a viagem de volta, o videomaker precisou enfrentar a enorme fila do check-in para despachar o equipamento. Eu, nesse período que fiquei no jornalismo de turismo, aprendi que tudo aquilo que você necessita deve caber na bagagem de mão, especialmente em uma viagem de dois dias. Basicamente, eu vestia ali as únicas roupas que tinha levado e a mochila estava tomada por porcarias que eu havia comprado no Walmart. Ou seja, eu estava um pouco suja e com um pedaço da caixa de tortillas à mostra, porque ela impedia o fechamento do zíper por completo. Na viagem de volta, não preciso mais fingir que eu não sou eu.

Até esse dia.

Ali na fila, eu contei ao Ricardo que tinha descoberto um macete: nossa passagem nos dava direito a tentar um upgrade de cabine. Com lugares disponíveis, poderíamos migrar da classe econômica para a executiva. Ele me mediu de cima a baixo, não acreditando muito que aquilo pudesse ocorrer, mas não custava tentar.

Então, eu tentei e o funcionário do check-in me olhou de cima a baixo também, deu uma bufada e pegou nossos passaportes para perguntar à supervisora dele. E, quando ela leu nossos nomes, arregalou os olhos de um jeito que eu nunca vi. Imediatamente, pensei: “FOMOS DESCOBERTOS!” e busquei no meu cérebro algo muito ruim que eu tivesse feito e me levasse a apodrecer em uma cadeia privada dos Estados Unidos. Tentei lembrar se na Flórida tinha pena de morte para o crime que eu não tinha cometido – mas ia precisar provar minha inocência na justiça -, e no momento em que eu já imaginava o filme que fariam sobre a minha vida e escolhia quem é que ia me interpretar no cinema, a mulher veio na minha direção:

– Leonor Macedo, que prazer em tê-la conosco!

E apertou a minha mão. Ricardo me olhou novamente como se dissesse “quem é você, afinal?” e a supervisora chamou o supervisor dela, que falava português e vestia um uniforme da companhia de alfaitaria nobre.

– Senhora Leonor, Senhor Ricardo, estávamos esperando por vocês…

Nada daquilo fazia sentido e eu procurava não dizer uma palavra, esperando apenas que ele me desse mais alguma pista, como quando a gente não se lembra de onde conhece determinada pessoa e espera que ela diga: “Não nos vemos desde aquela visita na casa da sua tia Eneida, em Andradina, e descobrimos que somos primos de segundo grau…”. E ele seguiu:

– Eu sou fulano de tal, sou do Serviço Especial da companhia aérea, e vou atendê-los a partir de agora. Mas por que é que vocês estavam na fila do check-in da econômica?

Eu continuava com uma cara de quem atendera uma ligação por engano, mas percebi que, a partir dali, não podia mais revelar quem eu era. Precisava ser quem ele achava que eu era:

– Parecia mais rápida do que a fila Premium quando chegamos, então entramos nela. Mas não tem problema…
– E como foi a viagem? Aproveitaram bem a Disney?

Foi aí que me deu um clique. Naquela confusão da ida, a companhia aérea já não sabia mais quem era staff e quem era milionário. E como eu voltei antes de todo mundo, me foi concedido um tratamento ultra personalizado. Um Serviço Especial que eu nem sabia que existia. Destravei uma fase escondida no videogame e resolvi jogar.

– Olha, infelizmente não temos mais assentos na classe executiva, mas o que posso oferecer a vocês é um assento plus e bloquear a poltrona do meio para que vocês tenham mais espaço.
– Ah, se não tem, não tem, né… Tudo bem.

Por dentro, fogos de artifício.

– Ainda não me conformo que vocês estavam no check-in da econômica. Estão vendo aquela funcionária ali da companhia? – e apontou para uma mulher interpelando os turistas na fila – Ela está perguntando o nome de um por um para encontrar vocês. Bom, aqui estão seus bilhetes. Na hora do embarque, vocês não precisam enfrentar a fila, ok? São os primeiros a entrarem na aeronave pela fila A.
– Antes das grávidas, dos idosos e dos deficientes físicos?
– Logo depois deles!

Já no avião, acomodados e absurdados com as saudações que recebemos de todos os funcionários pelos quais passamos, vimos um passageiro procurando seu assento e parando na lateral de nossas poltronas. A dele era na meiúca de nós dois, a tal prometida que estaria bloqueada. Eu, já totalmente mergulhada no personagem, olhei para a aeromoça com uma cara de “eu não sou obrigada a passar por isso”, mas não disse nada. Quanto menos se fala nessas situações, menos existe a chance de descobrirem que você não teria dinheiro nem para pagar um coiote na fronteira e viajar no porta-luvas de um Voyage 82.

– Eu vou sentar aqui, mas vou acomodar a minha família que está lá ao fundo. Já volto – disse o homem que nada tinha a ver com a situação.

E ele nunca mais voltou.

Apareceu, sim, uma outra mulher, cujo bilhete era para a mesma poltrona que a minha, e eu sequer me mexi.

– Você pode perguntar para a comissária, por favor, se preciso sair daqui? – e eu sabia da resposta, mas ali eu já estava incorporada e até com um pouco de raiva de mim mesma por ter tanto dinheiro em um mundo com tanta desigualdade.

E ela nunca mais voltou. Por fim, prestes a decolar, a funcionária que interpelava os turistas na fila entrou na aeronave:

– Senhora Leonor, Senhor Ricardo, vocês me foram tão recomendados… Que prazer imenso tê-los aqui conosco.

Falava alto, então todos começaram a esticar os pescoços para saber quem era aquela celebridade desgrenhada com nome de velha. Nunca descobriram.

– Vim aqui para contar que há, sim, uma poltrona na classe executiva.

Olhei para o Ricardo, ele olhou para mim, apertamos nossos olhos como se fôssemos disputar aquilo no porrete, sem nenhum pingo de classe. Cairia por terra qualquer indicativo de que pudéssemos ser os milionários pelos quais estávamos nos fazendo passar há horas e horas. Respirei fundo:

– Por favor, sorteie. Veja quem ganha e nos conte.

Ganhei. Suja, peguei minha mochila com a caixa de tortillas à mostra e fui para a classe executiva. Ainda vi despejarem um comandante do meu futuro assento, ele que, provavelmente, pilotaria no dia seguinte um avião até a Austrália e precisaria estar descansado, mas agora teria que dormir sentado. Por minha causa.

Mas ali eu não podia fazer mais nada, a mentira tinha ido longe demais.

Recebi uma taça de champanhe de boas-vindas, assisti aos melhores filmes, tomei bons vinhos, comi comida de chef. Afofaram meu travesseiro, dormi como um bebê. Fui a primeira a sair da aeronave entre agradecimentos incessantes por eu ser tão boa cliente da companhia. Em dois minutos, passei pela imigração, sem filas, e, quando achei que tivesse acabado, havia uma mulher apenas para pegar a mala do Ricardo, que apareceu na esteira em outros dois minutos.

Naquele corredor enorme até o desembarque, fiquei pensando se não chegaria no saguão e encontraria um homem de quepe segurando uma plaquinha com meu nome. Ele abriria para mim a porta de uma limousine e eu não reconheceria o caminho até a minha nova casa, em um condomínio de Alphaville. Muito mármore, colunas romanas. E, ao entrar, veria os empregados trocando os quadros da parede, tirando os do comandante e pendurando os meus, minhas fotos de família. Meu filho me olharia de pijama, sem entender porque foi levado do nosso apartamento de 80m² na Pompeia durante a madrugada para viver uma nova vida.

Mas tive que chamar um uber porque era mais barato.

30 comentários em “16 horas milionária

  1. Habemus enaotil! Não creio! Olhos cheios de lágrimas e risadas!
    Anos de espera valeram a pena!!!!!

  2. Escreva logo mais um livro e comece por esse conto. Depois, prepare-se para o Jabuti. Tenho nem roupa pra ser amiga de uma escritora tão incrível!

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