Lembranças & lembrancinhas

Faz pouco mais de um ano que eu decidi que não ia trazer mais lembrancinha de viagem pra ninguém. Talvez uma ou outra coisa para o Lucas ou para a minha mãe, mas aquela montoeira de chaveiros e copinhos de shots, camisetas com trocadilhos sem graça, ímãs mal feitos, canecas de gosto duvidoso… Nunca mais. E não é só muquiranice, mas o mundo não comporta mais tanta porcaria desnecessária que depois de cinco minutos vai virar lixo. Logo em seguida daquele obrigado não muito efusivo do primo, do sogro, da tia, do ex-namorado, do vizinho que tomou conta do gato todas essas coisas vão para o fundo de um armário e nunca mais vêem a luz do dia. Os copinhos ganham uma crosta de poeira infinita, as canecas são dispensadas na primeira limpa para arranjar espaço, os ímãs descolam da geladeira e se escangalham em mil pedacinhos. A gente até tenta juntar os cacos, mas uma vez desbicado parece que a gravidade é a grande vencedora dessa batalha silenciosa e diária que acontece longe dos nossos olhos. Basta chegar na cozinha para se deparar com a Mafalda estirada no chão, partida ao meio.

Mas isso não quer dizer que eu não me lembre das pessoas enquanto viajo, pelo contrário. Eu abri mão das lembrancinhas, não das lembranças. Aconteceu, como eu disse, há pouco mais de um ano, quando fui convidada para ir à Espanha pelo Ministério do Turismo (eu já contei aqui que trabalhei por um tempo em uma revista de uma companhia aérea).

Naquelas coincidências que dão à vida tanto valor, visitaríamos a região da Extremadura, onde nasceu o meu avô. E foi, sim, uma incrível coincidência porque quem me convidou não tinha nenhuma informação sobre isso. Tampouco é comum que as viagens para jornalistas sejam para Extremadura, porque é a zona mais inabitada do país – justamente por isso o Ministério do Turismo queria divulgar a gastronomia local. E seria na semana do meu aniversário.

Nenhum de nós ainda tinha ido para lá. Nem minha mãe nem minha tia ou qualquer um dos netos do meu avô tinha tido a oportunidade de conhecer aquela terra árida repleta de história – do mundo e de família. Da minha família. Quando meu avô veio para cá com os pais e os irmãos fugindo do fascismo de Francisco Franco, ele construiu uma vida do zero. Trouxe a experiência que tinha na roça, a sabedoria do homem do campo e nada mais. Dele não herdamos dinheiro nem terras, mas os cabelos e os olhos pretos, a teimosia espanhola e lealdade pelos nossos. Por isso, nenhum de nós ainda tinha conseguido ir para a Espanha ver de perto parte do solo de onde viemos.

Estava no aeroporto, prestes a embarcar, e minha tia (que está perto dos 80 anos) me mandou uma mensagem:

“Lelê, boa viagem! Quando você chegar por lá, olhe para as montanhas e pense no meu pai com todo o nosso amor. Ele sentia muita saudade das montanhas. Não sei se um dia vou conseguir conhecê-las.”

Uma vez lá, eu olhei para aquelas montanhas por todos nós e pensei no meu avô com a memória falha de quem o perdeu aos 3 anos de idade. Mas me reconheci nas silhuetas das mulheres espanholas e vi meu tio Paulo em muitos deles, com os cabelos todos penteados para trás. Vi um pouco do meu filho, dos meus primos, do meu irmão, da minha tia e da minha mãe. Levei cada um deles comigo, mas como levar um pouco daquele lugar para cada um deles?

Foi então que eu tive um clique. Por onde passei, comprei algum ingrediente. Trouxe as azeitonas que meus bisavós plantavam, um vinho jovem feito no porão escuro, úmido e cheio de teia de aranha de uma casa de pedra, como eles também faziam. Azeite, pata negra, grão de bico e o queso de los Ibores, feito no vilarejo da onde eles vieram – e que continua com pouco mais de 200 pessoas. Pimentões, açafrão. E fiz uma aula de culinária para aprender a preparar uma sopa de tomate com miga, um farelo de pão velho que era colocado no fundo da tigela para dar sustância quando o caldo não era suficiente.

Ao chegar no Brasil com as roupas fedendo a queijo, chamei todos eles para jantar em casa. Coloquei tudo na mesa, uma música espanhola na vitrola e disse:

– Aqui tem muito do vovô.

Foi nessa noite que eu aprendi a trazer uma montanha pra minha tia de presente de viagem.