Da janela lateral do quarto de dormir

Era 27 de junho daquele ano que nunca deveria ter acabado. Quase tudo aconteceu nesse dia: por muito pouco o avião na conexão de Montevidéu não decolou e por muito pouco, arrisco dizer, ele não caiu após a decolagem. Todo aquele atraso tinha sido por problemas mecânicos na aeronave, mas ameaçamos destruir o aeroporto de Carrasco se ela não saísse a tempo de chegarmos em Buenos Aires até às 21h50, quando o árbitro daria início ao jogo de nossas vidas. O avião cair ou não era um mero detalhe.

E, como se pode supor, ele não caiu.

O que aconteceu naqueles 90 minutos da primeira final da Libertadores se encontra na internet em uma rápida busca no Google – desculpe a grosseria, mas esse texto não é uma resenha da partida. É sobre o que se passou depois dela.

Quando conseguimos sair da Bombonera, vivos e um pouco mais apaixonados pelo futebol do que de costume, precisávamos comemorar. Encontramos uma birosca aberta altas da madrugada no centro da capital portenha e nos amontoamos em uma mesinha, acabando com o estoque de cerveja vagabunda da Dona Perla – não era esse o nome da proprietária do recinto, mas foi assim que a batizamos nos dias que se sucederam: “Vamos lá no bar da Perla?”.

Éramos mais de 50, rimos de felicidade, choramos de alegria, bebemos até virar a chave e a pancadaria começar, como sempre. Eu costumo sair dos lugares 5 minutos antes disso começar, mas eu não queria que aquele dia terminasse, então achei que valesse a pena. Cogitei até ser presa na Argentina para não ter que ir embora.

Não fui.

Ao contrário, seguimos para o hostel ali nas redondezas, na Avenida de Mayo, onde eu dividiria um quarto com outros nove amigos. Éramos duas mulheres (eu e Sabrina) e mais oito caras (meu irmão incluído, esse detalhe é importante). Esgotados da viagem, do jogo, da cerveja, fez-se um silêncio rápido quando as luzes se apagaram e, prestes a pegarmos no sono, gemidos tomaram conta do quarto.

Era um tal de ÃHM, ÃHM, ÃHM, UHM, UHM, UHM, que só quem viveu sabe do que estou falando.

Ninguém falou uma palavra.

Mas ainda deu tempo de pensar, antes de apagar de vez, que a Sabrina era bem cara-de-pau de transar em um quarto coletivo, afinal, de quem mais poderiam ser aqueles gemidos? Dormi.

No dia seguinte, no café da manhã, estávamos todos monossilábicos, um misto de ressaca e constrangimento. Até que a Sabrina interrompeu nossa greve de palavras, indignada:

– Fala, Lelê, abre o jogo! Com quem você transou?

Todas as cabeças se voltaram para mim.

– Oi?

Cabeças para um lado.

– Aquela gemeção toda, com quem foi que você transou?

Cabeças para o outro.

– Mas que cara-de-pau, Sabrina, é óbvio que foi você. Meu irmão estava no quarto! Você acha que, além de transar em um quarto coletivo, eu ia transar em um quarto onde estava meu irmão? Que tipo de tarada você acha que eu sou?

Cabeças para um lado.

– Não fui eu. Eu juro.

Cabeças para o outro.

– Ué, eu juro também. Eu juro pelo Corinthians.

Cabeças para um lado.

– Eu também juro pelo Corinthians.

Todos se entreolharam.

Isso era sério. Jurar em vão pelo Corinthians poucos dias antes do jogo final da Libertadores, em que poderíamos erguer uma taça inédita, invictos, nos custaria o título. Nenhuma de nós juraria pelo Corinthians se realmente não fosse verdade.

A dúvida prevaleceu durante toda a refeição. Quem teria transado naquele quarto?

Quando saímos para caminhar por Buenos Aires, que mais parecia um bairro da Zona Leste naqueles dias, dobramos à esquerda e vimos que, grudado ao hostel, tinha um cinema pornô. Um cinema que dava direto para a veneziana do nosso quarto, com 24h ininterruptas de diversão. Os gemidos eram altíssimos e, mesmo àquela hora da manhã, se misturavam com as buzinas e com a falação dos pedestres em uma das avenidas mais movimentadas da cidade.

E que seguiram firmes e fortes, agudos e guturais nos dias seguintes, invadindo aquele cômodo alvinegro, onde a única felicidade vinha mesmo do futebol.

Daqui de onde eu vejo

No começo da pandemia, eu comprei uma luneta. Seria mais bonito dizer que foi para observar, daqui do meu lugar, céu, lua e estrelas. Ainda que presa a um espaço restrito por sei lá quantos meses, ver que o mundo é muito maior do que esses 80 m² e que, apesar dos pesares, ele segue lá fora, iluminado e imenso, girando e ditando o tempo. Mas, não: eu comprei a luneta para espionar os meus vizinhos.

A ideia era conseguir suprir uma espécie de tara que eu tenho em escutar diálogos alheios. Gosto de sentar perto de casais e amigos em restaurantes para prestar atenção – de um jeito sutil – naquilo que está sendo dito. Tento traçar em minha cabeça como chegaram ali, onde aquela história vai dar, acompanho o drama, por vezes me emociono, torço por eles e passo dias imaginando desfechos. Durante um período, andei com um caderninho para anotar as melhores frases de desconhecidos.

Também tento, desde criança, adivinhar quem são essas pessoas que passam pela gente todos os dias. Quem é essa senhora que sentou na minha frente no metrô? Da onde vem? No que trabalha? É feliz? O que sentiu pela primeira vez que viu o mar? Tem medo de avião? Encontrou o amor da vida? Teve a sorte de ser correspondida? Por que não sorri? Será que conhece alguém que eu conheço?

Para mim, tudo isso evaporou com a pandemia. A vida acontece, mas agora fechada em caixinhas.

Da janela do meu quarto, vejo 14 prédios. Uns de esquina, outros bem de frente, uns de longe, outros mais de perto. Em uma conta rápida de padaria, cerca de 420 apartamentos. Eu precisava daquela luneta. Escolhi uma pela internet com o amadorismo de quem só usou o binóculo bosta do primo na infância, quando brincávamos de Comandos em Ação na chácara dos meus tios. Nos sentíamos em pleno Vietnã entre as poucas árvores do pomar – e eu, caçulinha, tentava disfarçar minha fobia de aranhas para não parecer medrosa entre os mais velhos.

Quanto de zoom será que eu precisaria para enxergar aquela janelinha lááááááá longe, a umas quatro quadras daqui? Acho que isso tá bom. Nossa, que caro. Mas vale, é um investimento. Finalizar compra.

É claro que deu errado e que a luneta era uma bosta, o zoom imprestável, que um bom equipamento custaria pelo menos 10 vezes mais do que eu paguei e que, quando coloquei-a no olho direito, senti pela primeira vez uma catarata avançada. Era eu ou ela o problema?

Meu campo de visão, então, ficou restrito aos dois prédios a meio quarteirão de distância do meu. Ainda eram cerca de 60 apartamentos, entretenimento para toda a quarentena. Como as coisas aqui no Brasil começaram algum tempo depois da Ásia e da Europa, vimos pela televisão as notícias de como eles estavam lidando com tudo isso. Vizinhos que tinham se apaixonado a partir de suas sacadas, tenores que faziam serenatas das janelas, professores de ginástica que incentivaram todo um condomínio a se exercitar da varanda. Talvez nenhum tenor more por ali, mas as expectativas eram grandes. Quem sabe até, lá pela terceira ou quarta semana, eu fosse peça-chave para desvendar um assassinato perfeito, calculado e planejado durante anos, mas que não contava com uma testemunha e sua lunetinha do outro lado da rua?

Há dois meses, não toco na luneta. Depois de quase 120 dias de tentativas, em que o ápice da agitação foi quando aquele homem do 13º andar fez 15 minutos de polichinelos ininterruptos, posso garantir que meus vizinhos são as pessoas mais ordinárias do mundo. Exatamente como eu.

16 horas milionária

Em fevereiro desse ano, eu ainda trabalhava para uma companhia aérea latino-americana. Nunca quis ser piloto ou aeromoça, tampouco me fascina a vida nos ares. Menos ainda aquele ritual de aeroporto: chegar muitas horas antes da viagem, fazer check-in, despachar as malas, tirar quase toda a roupa no raio-x e seguir apitando, jogar o perfume que trouxe na bagagem de mão fora, gastar meio salário mínimo para tomar um café meia boca, quebrar a cabeça na conversão dólar-real no Duty Free para entender que absolutamente nada ali vale a pena. Nada.

Mas acabei no jornalismo de turismo por uma temporada e não tenho do que reclamar. Enquanto os colegas estão roendo o osso em redações e ganhando mal pra chuchu, você está ganhando mal pra chuchu, mas almoçando ou jantando em restaurantes premiados, conhecendo lugares inusitados, se hospedando em hotéis que jamais conseguiria pagar com seu próprio dinheiro e desfrutando experiências tão exclusivas que ninguém nunca acreditaria se dissesse que a primeira vez que viajou de avião foi na vida adulta e que você ficou presa no cinto de segurança da aeronave porque não sabia como desabrochá-lo. Ou seja, trabalhar com jornalismo de turismo é quase como viver uma vida que não te pertence – e você fica o tempo todo com medo de descobrirem que você não tinha que estar ali.

O que me leva de volta a fevereiro desse ano. Acontece que naquele mês a companhia aérea tinha fechado uma parceria com a Disney e resolveu presentear seus melhores clientes com uma viagem a Orlando para toda a família. E vocês não têm ideia de quem é essa gente. São CEOs, CMOs, UFOs de toda a América Latina, gente que fecha pacotes anuais com a companhia por uma fortuna e pode ir para onde e quando quiser. Enquanto você está se apertando em uma quitinete em Santos com os amigos e dividindo as despesas do mercado para ninguém sair no prejuízo, eles vão passar dois dias, talvez um, em Aspen. Às vezes, almoçam em Paris e jantam no Equador, porque sim. Gente que, com toda a certeza, conseguiria pagar a sua própria viagem para a Disney, mas quanto mais você tem, menos parece que precisa gastar e eles ganharam o rolê. Porque sim também. Era o mínimo que a companhia aérea podia fazer por eles e eu fui convidada a cobrir essa viagem.

No dia em que decolaríamos, às 10h da manhã de São Paulo a Orlando em um voo direto, caiu a maior chuva que a capital paulistana viu nos últimos 67 anos. Quando a última tormenta dessas acometeu a cidade, meu pai tinha dois anos e muito provavelmente tenha apenas cagado nas calças naquele dia, como fazia todos os dias. Eu, não. Eu tive que lutar com tudo o que tinha para atravessar a cidade e conseguir chegar ao aeroporto, porque eu nunca perdi um voo em toda a minha vida. Tentei táxi, tentei uber, tentei ir a pé, tentei o metrô, tentei ônibus. Eu entrei em carros com desconhecidos. E eu cheguei.

Mas a tripulação não chegou.

Passava das duas da tarde, voo cancelado, aquele monte de milionário empilhado na Sala VIP, a gente sem saber o que fazer, os escafandristas procurando vestígios de São Paulo, até que nos foi dada a notícia, que para mim era boa:

– Conseguimos um voo para Miami às dez da noite. De lá, pegaremos um ônibus a Orlando e depois de 4h ou 5h, estaremos na Disney. Viva!

Nunca vou esquecer da cara de horror (o horror… o horror…) que metade do PIB do nosso subcontinente fez ao ouvir a notícia. Era a primeira vez na vida que eles iam andar de ônibus, com toda a certeza. Eles estavam prestes a descobrir como nós, selvagens, fazemos para nos divertir nas férias. Porque, sim, eu já comprei uma passagem para o Chile com escala de 8h em Assunção porque era metade do preço. E, se vocês entendem um pouco de mapas, vão ver que não faz o menor sentido sair de São Paulo para ir até o Paraguai e depois ao Chile. Muito menos de madrugada.

Assim fizemos. Todos eles ficariam por 5 ou 10 dias, tanto faz, mas a mim foi dada uma única opção: dois dias e não se fala mais nisso. Voltaríamos antes, eu e o videomaker, mesmo estourados da via-crucis da ida, embora, de novo, eu não esteja aqui para reclamar. Ainda era melhor do que 97% do trabalho de todos os meus amigos.

Já no aeroporto para a viagem de volta, o videomaker precisou enfrentar a enorme fila do check-in para despachar o equipamento. Eu, nesse período que fiquei no jornalismo de turismo, aprendi que tudo aquilo que você necessita deve caber na bagagem de mão, especialmente em uma viagem de dois dias. Basicamente, eu vestia ali as únicas roupas que tinha levado e a mochila estava tomada por porcarias que eu havia comprado no Walmart. Ou seja, eu estava um pouco suja e com um pedaço da caixa de tortillas à mostra, porque ela impedia o fechamento do zíper por completo. Na viagem de volta, não preciso mais fingir que eu não sou eu.

Até esse dia.

Ali na fila, eu contei ao Ricardo que tinha descoberto um macete: nossa passagem nos dava direito a tentar um upgrade de cabine. Com lugares disponíveis, poderíamos migrar da classe econômica para a executiva. Ele me mediu de cima a baixo, não acreditando muito que aquilo pudesse ocorrer, mas não custava tentar.

Então, eu tentei e o funcionário do check-in me olhou de cima a baixo também, deu uma bufada e pegou nossos passaportes para perguntar à supervisora dele. E, quando ela leu nossos nomes, arregalou os olhos de um jeito que eu nunca vi. Imediatamente, pensei: “FOMOS DESCOBERTOS!” e busquei no meu cérebro algo muito ruim que eu tivesse feito e me levasse a apodrecer em uma cadeia privada dos Estados Unidos. Tentei lembrar se na Flórida tinha pena de morte para o crime que eu não tinha cometido – mas ia precisar provar minha inocência na justiça -, e no momento em que eu já imaginava o filme que fariam sobre a minha vida e escolhia quem é que ia me interpretar no cinema, a mulher veio na minha direção:

– Leonor Macedo, que prazer em tê-la conosco!

E apertou a minha mão. Ricardo me olhou novamente como se dissesse “quem é você, afinal?” e a supervisora chamou o supervisor dela, que falava português e vestia um uniforme da companhia de alfaitaria nobre.

– Senhora Leonor, Senhor Ricardo, estávamos esperando por vocês…

Nada daquilo fazia sentido e eu procurava não dizer uma palavra, esperando apenas que ele me desse mais alguma pista, como quando a gente não se lembra de onde conhece determinada pessoa e espera que ela diga: “Não nos vemos desde aquela visita na casa da sua tia Eneida, em Andradina, e descobrimos que somos primos de segundo grau…”. E ele seguiu:

– Eu sou fulano de tal, sou do Serviço Especial da companhia aérea, e vou atendê-los a partir de agora. Mas por que é que vocês estavam na fila do check-in da econômica?

Eu continuava com uma cara de quem atendera uma ligação por engano, mas percebi que, a partir dali, não podia mais revelar quem eu era. Precisava ser quem ele achava que eu era:

– Parecia mais rápida do que a fila Premium quando chegamos, então entramos nela. Mas não tem problema…
– E como foi a viagem? Aproveitaram bem a Disney?

Foi aí que me deu um clique. Naquela confusão da ida, a companhia aérea já não sabia mais quem era staff e quem era milionário. E como eu voltei antes de todo mundo, me foi concedido um tratamento ultra personalizado. Um Serviço Especial que eu nem sabia que existia. Destravei uma fase escondida no videogame e resolvi jogar.

– Olha, infelizmente não temos mais assentos na classe executiva, mas o que posso oferecer a vocês é um assento plus e bloquear a poltrona do meio para que vocês tenham mais espaço.
– Ah, se não tem, não tem, né… Tudo bem.

Por dentro, fogos de artifício.

– Ainda não me conformo que vocês estavam no check-in da econômica. Estão vendo aquela funcionária ali da companhia? – e apontou para uma mulher interpelando os turistas na fila – Ela está perguntando o nome de um por um para encontrar vocês. Bom, aqui estão seus bilhetes. Na hora do embarque, vocês não precisam enfrentar a fila, ok? São os primeiros a entrarem na aeronave pela fila A.
– Antes das grávidas, dos idosos e dos deficientes físicos?
– Logo depois deles!

Já no avião, acomodados e absurdados com as saudações que recebemos de todos os funcionários pelos quais passamos, vimos um passageiro procurando seu assento e parando na lateral de nossas poltronas. A dele era na meiúca de nós dois, a tal prometida que estaria bloqueada. Eu, já totalmente mergulhada no personagem, olhei para a aeromoça com uma cara de “eu não sou obrigada a passar por isso”, mas não disse nada. Quanto menos se fala nessas situações, menos existe a chance de descobrirem que você não teria dinheiro nem para pagar um coiote na fronteira e viajar no porta-luvas de um Voyage 82.

– Eu vou sentar aqui, mas vou acomodar a minha família que está lá ao fundo. Já volto – disse o homem que nada tinha a ver com a situação.

E ele nunca mais voltou.

Apareceu, sim, uma outra mulher, cujo bilhete era para a mesma poltrona que a minha, e eu sequer me mexi.

– Você pode perguntar para a comissária, por favor, se preciso sair daqui? – e eu sabia da resposta, mas ali eu já estava incorporada e até com um pouco de raiva de mim mesma por ter tanto dinheiro em um mundo com tanta desigualdade.

E ela nunca mais voltou. Por fim, prestes a decolar, a funcionária que interpelava os turistas na fila entrou na aeronave:

– Senhora Leonor, Senhor Ricardo, vocês me foram tão recomendados… Que prazer imenso tê-los aqui conosco.

Falava alto, então todos começaram a esticar os pescoços para saber quem era aquela celebridade desgrenhada com nome de velha. Nunca descobriram.

– Vim aqui para contar que há, sim, uma poltrona na classe executiva.

Olhei para o Ricardo, ele olhou para mim, apertamos nossos olhos como se fôssemos disputar aquilo no porrete, sem nenhum pingo de classe. Cairia por terra qualquer indicativo de que pudéssemos ser os milionários pelos quais estávamos nos fazendo passar há horas e horas. Respirei fundo:

– Por favor, sorteie. Veja quem ganha e nos conte.

Ganhei. Suja, peguei minha mochila com a caixa de tortillas à mostra e fui para a classe executiva. Ainda vi despejarem um comandante do meu futuro assento, ele que, provavelmente, pilotaria no dia seguinte um avião até a Austrália e precisaria estar descansado, mas agora teria que dormir sentado. Por minha causa.

Mas ali eu não podia fazer mais nada, a mentira tinha ido longe demais.

Recebi uma taça de champanhe de boas-vindas, assisti aos melhores filmes, tomei bons vinhos, comi comida de chef. Afofaram meu travesseiro, dormi como um bebê. Fui a primeira a sair da aeronave entre agradecimentos incessantes por eu ser tão boa cliente da companhia. Em dois minutos, passei pela imigração, sem filas, e, quando achei que tivesse acabado, havia uma mulher apenas para pegar a mala do Ricardo, que apareceu na esteira em outros dois minutos.

Naquele corredor enorme até o desembarque, fiquei pensando se não chegaria no saguão e encontraria um homem de quepe segurando uma plaquinha com meu nome. Ele abriria para mim a porta de uma limousine e eu não reconheceria o caminho até a minha nova casa, em um condomínio de Alphaville. Muito mármore, colunas romanas. E, ao entrar, veria os empregados trocando os quadros da parede, tirando os do comandante e pendurando os meus, minhas fotos de família. Meu filho me olharia de pijama, sem entender porque foi levado do nosso apartamento de 80m² na Pompeia durante a madrugada para viver uma nova vida.

Mas tive que chamar um uber porque era mais barato.

Sobre desfechos

Filho,

Eu não lembro bem qual foi o dia em que resolvi contar para os seus avós que estava grávida. Lembro do que aconteceu antes (sonhei com a minha avó me pedindo para contar), o durante e tudo o que veio depois.

Sei que se eu fizer um cálculo matemático, devo achar a data exata: eu estava grávida de 6 meses, encolhendo a minha barriga para ninguém desconfiar e me acostumando com a ideia de que, a partir dali, minha vida ficaria de pernas para o ar. Mas quem é bom de matemática aqui é você: eu sou muito ruim e o dia exato tampouco importa.

Naquela manhã eu nem consegui falar. Já contei essa história uma vez para você e já estive lá na minha memória milhares de vezes, mas até bem pouco tempo doía igual. Foi difícil transformar o meu desespero e a minha falta de ar ao encarar a minha mãe para contar a ela que, aos 18 anos, eu te carregava dentro de mim.

E eu me lembro a data exata em que esse momento específico da minha vida parou de me sufocar, em que consegui olhar para trás e sorrir: foi no dia 10 de março de 2017. Parece que foi ontem (e foi!).

Acontece que no dia 9 de março de 2017 eu lancei um livro sobre tudo o que o você me ensinou nesses 15 anos de maternidade. Do momento em que me acostumei com a ideia de ser mãe e contei para os seus avós até hoje, eu registrei o seu crescimento e o meu próprio. E isso virou um livro. E teve um lançamento. E foi memorável.

Tinha gente que nem era de São Paulo, teve amigo novo que conheci tem uma semana e amigo velho por lá. Gente que estudou comigo no pré, no primário, no meu ginásio, no colegial, na minha faculdade. Gente do meu primeiro, do meu segundo, do meu terceiro emprego e do atual também. Tinha vizinho por lá, tinha amigo de bar. Os amigos que o Corinthians e os Gaviões me deram. Os amigos que fiz na internet. Os amigos jornalistas. Quase toda a minha família. Amigos que fiz por causa de uns 4 ex-namorados e que se tornaram meus grandes amigos. Tinha ex-namorado que hoje é amigo. Teve gente que nunca tinha me visto, mas lia meus textos e queria me conhecer. Seus amigos da escola, muitos deles acompanhados das mães. Seus amigos que já não estudam mais contigo também. Tinha seu pai, a Thaís e seu irmão, que são da minha família. Seus avós vieram do interior. Seu tio fotografou por 4 horas para me dar de presente.

Tinha você, filho, que se sentiu TREMENDAMENTE importante e orgulhoso, autografando ali na mesa que o Lira Neto já havia renunciado.

Depois que você foi embora, ainda ficamos mais um tempo ali. A livraria fechou, mas rolou mais uma hora de autógrafos com portões fechados. Depois fomos expulsos e tive que assinar uns livros sentada na porta de uma lanchonete natural, lá pelas 23h30. E depois fui para o bar, onde dediquei mais alguns livros.

Foram duas horas e meia de fila que todas essas pessoas enfrentaram para me dar um abraço, ganhar uma dedicatória e vibrar junto comigo por essa conquista, que foi muito maior que um livro publicado. Foi o alívio de que tudo deu (e está dando) certo.

No dia seguinte, acordei ainda exausta e fiquei um tempo deitada. Você já tinha ido para a escola e seu avô se preparava para ir embora. Eu chamei seus avós na sala, ali no mesmo lugar em que contei que você estava vindo ao mundo, e só agradeci. Eu já sabia que essa aventura de ser sua mãe tinha sido maravilhosa, mas chegamos aqui e tudo deu muito mais certo do que eu esperava. E, se isso foi possível, foi por conta de toda a nossa rede de apoio, dos seus avós, do seu tio e de nós dois.

Quinze anos depois, olho para aquele dia que nem sei qual foi e respiro. A gente é foda, filho, e juntos somos imbatíveis.